11/02/2013

dúvida perene

Uma comunicação sub secretum (i.e. escondida) da sede da ICAR em 2000, enviada aos núncios católicos pelo mundo fora, torce o nariz à transição, por ser um procedimento 'superficial' - e que, por isso, as pessoas transsexuais não são do seu sexo e género real, mas antes o que lhes foi atribuído ao nascimento. Na verdade, podia-se argumentar que quem aceita que um wafer benzido se torna literalmente (não simbolicamente) no corpo de um homem morto (1) há quase dois mil anos não tem autoridade moral para fazer grandes usos de cepticismo quanto a formas e identidades.

Na mesma comunicação, ordena-se às igrejas que nunca corrijam o nome constante do registo baptismal - um comportamento arrogante e ilícito, numa tentativa de se sobrepôr às autoridades com competência para decidir sobre a matéria - o Registo Civil. Também é determinado que não se deve dar acesso ao matrimónio religioso às pessoas transsexuais com um cônjugue do outro sexo (novamente caíndo na ilicitude).

Teria, contudo, uma alguma curiosidade em ver a reacção se um dia eu e a minha namorada nos apresentassemos na paróquia local para casar. Somos ambas ateias, mas a proposição é tentadora.


(1) - o que terá a ASAE a dizer sobre isto?

seres superiores

O jornal da tarde na RTP1 acaba de dedicar uma boa meia hora à demissão de Joseph Ratzinger. Para além de não ser muito laica a importância relativa dada às notícias de cada religião, a entrevista de Alberta Marques Fernandes a dois teólogos (um ramo do 'saber' a par da astrologia ou do tarot), foi isenta de qualquer pergunta ou comentário que não os mais obsequiosos.

Não se abordou nenhuma das maiores controvérsias do reinado de Ratzinger, líder totalitário da última teocracia absolutista na Europa: os ataques às minorias sexuais e de género, exercidos até nas mensagens de natal, a restauração de seitas como a Sociedade Pio X e do bispo anti-semita Richard Williamson, o auxílio dado à propagação do HIV em África através da condenação do uso do preservativo, e a continuidade da tradição milenar de exclusão das mulheres no seio da ICAR. A tolerância do clero pedófilo, e tentativa activa de esconder os seus crimes da sociedade e da lei, foi miraculosamente transubstanciada num esforço heróico para acabar com o abuso sexual de crianças.

Contudo, as afirmações de Januário Torgal sobre o assunto conseguem ir ainda mais além: o papa é um ser superior.

18/06/2012

e mais reminiscencias

(na continuaçao desta)

Um jantar organizado por amigas, para as que sao amigas das pikenas.

Uma pikena comigo conversa mete. Tem uma profissao interessante, já viajou muito, o diálogo até se torna interessante - embora sem segundas intençoes da minha parte, dado estar comprometida, e ser pikena de uma pikena só. Ela vai-se soltando, mostra os dentes enquanto puxa os cabelos para trás, does her thing.

A dada altura, a conversa passa para a vida nocturna e discotecas GLB no Porto. Há uma de que ela gosta, e outra que detesta. Porque?, pergunto. Por causa daquelas travecas nojentas que se andam a vender. Nao sao homens nem mulheres, gozam é com a nossa cara, fazem-nos ter péssima imagem. Eu ergo subtilmente a sobrancelha esquerda, o meu sinal corporal para bullsh*t. Já viste alguma mulher a comportar-se assim??, acrescenta, feroz. Em vez de os operarem, os médicos deviam eram dar-lhes uma injecçao!

Nao sei se é crossdresser-fóbica, dragqueen-fóbica, ou transfóbica; nao sei se eu estaria incluída na sua lista de eutanásia involuntária. Abaixo de homossexual, há uma só camada, indistinta. Mas nao me faz diferença ser visada ou nao; é uma linguagem odiosa que nao posso tolerar, seja quem for o objecto. O choque, contudo, tolhe-me as palavras, e nao consigo sequer esboçar resposta.

No final, diz que gostou muito de me conhecer. Posso ficar com o teu número? Sim, claro. Dou-lhe o pessoal, com 8 dígitos. Ela anota-o no telemóvel, e despedimos-nos.

achtung

Antes de receber uma quantidade de emails com mensagens de desagravo, nao resisto a chamar a atençao para a tag dos dois posts anteriores. Provavelmente faço generalizaçoes grosseiras, se calhar nao acredito em tudo, nem estou em pé-de-guerra. E a ironia é como o sol: até faz bem apanharmos um pouco.

detalhes

É certo que o tema do último post me dá pano para mangas. E, indo buscar ao baú de memórias outros (des)encontros de ideias e mundividencias, deixo-vos mais esta:

No fim de uma reuniao, eu e uma jovem mulher feminista (que, tanto quanto sei, nao gosta tanto de pikenas como eu; o que é inteiramente irrelevante). Desabafa-me sobre uma sua "preocupaçao" em relaçao às mulheres transsexuais: de como sao tao conformistas com um papel de género patriarquista e sujeitador das mulheres; aderem a ele com um abandono inconsciente e cúmplice. All quite fine, but...

...ela de fazenda, unhas e cabelo impecavelmente cuidados, saltos altos. Eu, de botas de tropa, calças de ganga preta já mais em estado de decomposiçao do que propriamente coçada, t-shirt, maquilhagem impecavelmente ausente, cabelo desgrenhado.

Nesse momento, passou-me uma palavra pela cabeça: bullsh*t.

Quando encontramos uma forma de ver o mundo confortável (e que nos permite assumir o paternalismo que já detestamos), os factos sao um detalhe.

17/06/2012

na tanga

(foto daqui)
Sou uma leitora ocasional de alguns blogs, entre eles o Tangas Lésbicas. Nao preciso de dizer que só acompanho algo quando acho que vale o meu tempo, e geralmente aprecio os textos das pikenas que por lá escrevem (que espero nao levarem a mal o tratamento). Infelizmente já nao presto a mesma atençao que antigamente ao mundo blogueiro (fases, disposiçoes, nada de intencional), e só reparei neste post quando uma amiga me chamou atençao para ele, embora tenha mais de um anito.

A Marita fala-nos da Filipa Gonçalves (notavelmente, a pikena tem nome; e provavelmente uma carrada de outras características pessoais para além da filiaçao e identidade de género). A observaçao da Marita no seu penúltimo parágrafo levou-me a outra reflexao, que aqui vos deixo.

Tenho algumas pikenas com quem costumo tomar um copo nas Galerias de Paris aos sábados à noite (ver passar pikenas), conversar (sobre outras pikenas, sobretudo), desabafar (novamente sobre outras pikenas) ir a discotecas (geralmente à procura de pikenas), inter alia. Chamo-lhes amigas.

Temos em comum várias coisas, para além de, digamos assim, gostarmos muito da companhia de pikenas. Cabelinho curto, jeans, t-shirts sem decote, um sentido para a maquilhagem que nao contempla muito mais que o recurso ao Nivea azul, alguma quantidade de iniciativa e sentido prático acima da que geralmente se encontra entre as pikenas que nao gostam de outras pikenas tanto como nós (ahem, *haughty pose*)

Existe alguma variaçao individual, é certo. Mas nada que nos impeça de ouvir frequentemente comentários como olha, aquelas trabalham todas na Luís Simoes.

Do lado dos meus amigos que, ponhamos assim as coisas, gostam mais de passar tempo com outros pikenos, também há uma uniformidade desconcertante. Mais sensibilidade, cuidado com o corpo (trabalhado a rigor no Holmes Place mais próximo), uma linguagem corporal sugestiva de falta de rigidez nas articulaçoes, e - de longe - muito mais fashion-sense. Tanto que já nao dispenso a companhia de um deles quando preciso de renovar o guarda-roupa; é o anjo-da-guarda que mantém longe de mim as camisas de xadrez XL e boxers aos quadrados.

E disto tudo saiu-me um pensamento inquietante. Será que num mundo menos normativo, quem se sente atraíd@ por mulheres/homens, independente do seu próprio sexo, insistiria, tanto como fazemos agora, em conformar-se com um padraozinho entaipado de masculinidade/feminilidade?

Trocando por miúdas miúdos, será que preciso mesmo de saber mudar um pneu para poder ser lésbica?

19/03/2012

simpósio identidade de género e transsexualidade

imagem Pedro Ferreira/SPSC

É já no próximo sábado, dia 24, que a Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica vai organizar o simpósio "Identidade de Género e Transsexualidade",o primeiro do género em Portugal. Realiza-se no Hospital de S. João, Porto (mesmo que não intencional, sabe bem ver um piscar de olhos à descentralização ;). Vou intervir na mesa 'Novas Políticas', com uma resenha do caminho que se desenha após a conquista da Lei de Identidade de Género

Noutras mesas estarão investigadores, profissionais na área como cirurgiões, endocrinologistas, psicólogos, psiquiatras, bem como o testemunho pessoal de um homem transsexual. O programa completo pode ser consultado aqui. Quem quiser assistir, deve consultar as condições de inscrição - felizmente, o preço para o público geral é bastante simbólico, tendo em conta o tipo de evento.

20/02/2012

null

São palavras tristes as que vou escrever; lamento que o tenha de fazer. Mas o silêncio é cúmplice - e o activismo é a antítese disso.

No mês passado, a latitudes mais a sul do que o Porto, foi realizado um debate com um tema populis recente, sobre transsexualidade. Na mesa estava uma amiga que, nos últimos tempos tem marcado presença nos média: é uma jovem inteligente com um percurso de vida notável, e que sabe cativar pela empatia e envolvência do seu discurso.

As surpresas menos boas começaram com o flyer de divulgação. Falava da "despatologização" da transsexualidade - um conceito pouco certo dado o discurso consistentemente inconsistente de quem a tem defendido - como se fosse a reivindicação primária da população transsexual portuguesa. Quem o lesse, se mais não soubesse do tema, julgaria naturalmente que era este o objectivo consensual e principal da parte de quem por ele é afectado.

Da quase centena de homens e mulheres transsexuais em Portugal, que conheci pessoalmente ao longo dos meus anos de activismo, nenhum deles, sabendo do que se tratava a "despatologização", a considerou necessária, desejável, ou sequer inócua. É uma percentagem grande; se falássemos em pessoas homossexuais, seriam umas 45,000. Mesmo que não seja uma amostra absolutamente representativa - em última análise, só 100% o são - estatisticamente é muito improvável um quadro geral substancialmente diferente. Novamente em termos comparativos, seria em qualquer caso bem menor a adesão das pessoas transsexuais a esta "reivindicação", do que foi dos homossexuais à não-procura da igualdade no acesso ao casamento - por ser a "cópia" de um "modelo heterossexista e patriarcal". Uma estratégia não seguida, e ainda bem.

Não era lendo o flyer que saberíamos disto; nem que na organização do debate não estavam pessoas transsexuais. A minha amiga foi convidada - e só. Respeitando e reconhecendo o seu contributo na sensibilização pública, nunca tinha participado num debate orientado para políticas e reivindicações; seria difícil pelo menos parte da organização não saber disso, ou não ter alguns contactos com experiência neste tipo de iniciativas.

Às comparações generalista-falaciosas com outras população e questões, sem o detalhe que só o conhecimento sério do que falamos traz, seguiu-se um momento notável. Dois activistas homossexuais, um na mesa e outro na plateia, discutiam entre si como "nós" (eles) iriam conduzir esta "luta importante". Quando falam de/por nós como se nem sequer estívessemos na sala, sabemos de quanta consideração somos objecto.

28/12/2011

ikea

A cada-vez-mais-popular cadeia sueca tem a tradição de produzir anúncios com mensagens pró-GLB. Também tem produtos dirigidos à população homossexual (colchas com o desenho de um casal homossexual, do que já vi pessoalmente), e, dizem alguns, até uma política de recrutamento amiga da diversidade.

A IKEA também já apresentou anúncios com pessoas transsexuais. Infelizmente, a qualidade não é a mesma: utilizam estereótipos crús e um nível de humor bastante lavatorial - sobretudo no primeiro destes exemplos.

O que é pena - a intenção aparenta ser boa, e pode bem ser que a IKEA se redima no futuro.

Contudo, e curiosamente, estes dois vídeos já ganharam menções honrosas por parte de algumas associações homossexuais norte-americanas, patologicamente ansiosas por falar em nome das pessoas transsexuais. 

Seria curioso ver a sua reacção a um anúncio com um homem gay a gritar em falsetto depois de uma colisão entre os gónadas e a sua mobília...

bis, lés, heteros

Ao longo do tempo, os estudos sobre a distribuição da orientação sexual entre as mulheres transsexuais viram a percentagem de não-heterossexuais aumentar de (literalmente) 0%, para valores sucessivamente maiores. Um dos exemplos desta última ‘geração’ de estudos, de Walter Bockting (Universidade do Minnesota), indica uma distribuição de 38% bissexuais, 35% lésbicas, e 27% heterossexuais. Estas últimas descem de 100% para pouco mais de um quarto.

Obviamente, o motivo não é as mulheres transsexuais se terem progressivamente queerizado ao longo dos últimos 60 anos de pesquisa. Pelo contrário, foram os investigadores que passaram a ter acesso a amostras mais numerosas e representativas; a postura também se tornou mais científica e menos dogmática (um processo, infelizmente, ainda incompleto).

Para quem está de fora, é uma das duas percentagens mais ‘chocantes’ sobre a transsexualidade. A outra é que, para cada mulher transsexual, existem pelo menos dois homens transsexuais - são eles a grande maioria, e não o contrário.

Para quem está de dentro, o chocante é perceber que ainda são muitos - quase todos - os que ficam surpreendidos com estes números simples. Há aqui um montanha ou duas de trabalho, ainda, a fazer.